Resenha - O Cemitério de Praga (Umberto Eco)
- Letícia Marques

- 6 de dez. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 1 de mai. de 2021
Leitura do mês de Novembro do AMAZONAS Clube de Leitura
Não apenas um, mas dois personagens com um grave problema de memória recente, trocas de mensagens, fatos mirabolantes (apesar de supostamente verdadeiros), brigas, espionagens internacionais, traições, diversas visões para um mesmo fato. É isso que Umberto Eco nos propõe em O Cemitério de Praga, obra escrita em 2010 e publicada, atualmente, no Brasil, pela Record Ltda.
"Não que se ame particularmente, mas o tédio que sente pelos outros o induz até a se suportar"
Logo no início da obra somos apresentados à Simone Simonini, ou Capitão Simonini, nosso tabelião/falsificador de documentos/espião internacional (ou suposto espião). Nascido em Turim, foi criado por grande parte da sua vida por seu avô, um indivíduo extremamente antissemita, com um ódio especial aos judeus. É notório durante leitura que o preconceito foi passado para o neto, Simonini, esse que, definitivamente, não foi desenvolvido para agradar os leitores.
Essa raiva, especialmente no caso do neto, é fruto unicamente do que ouviu falar, já que o próprio Simonini admite no início do livro nunca ter conhecido um judeu. Caro leitor, esse ódio ainda trará muitos problemas, tanto para Simonini como para Dalla Piccola.
"Dizem que a alma é somente aquilo que se faz, mas, se eu odeio alguém e cultivo esse rancor, santo Deus, isso significa que existe um dentro! Como dizia o filósofo? Odi ergo sum [odeio, logo existo]"
Eco trata, por meio das concepções e atitudes de Simonini, de diversas temáticas, como xenofobia e machismo, bem como aborda atitudes duvidosas, especialmente de cunho moral. Podemos dizer que Simonini é o que, nos dias atuais, chamaríamos de disseminador profissional de Fake News.
Já a outra metade da dupla se trata do Abade Dalla Piccola. Não são apresentadas muitas informações da sua história de vida, sabemos apenas que faz parte do clero e que conhece os detalhes de diversas passagens e aventuras de Simonini. Além disso, vive no apartamento anexo ao do Capitão. Detalhe: Simonini sempre esquece o que acontece no espaço de tempo em que Dalla Piccola está acordado, e vice-versa.
Assim, começa, de fato, a história. A busca de dois homens pela verdade e uma justificativa para sua perda de memória. Durante esse processo de (re)descobrimento dos protagonistas, somos levados para uma viagem por diversas localidades e momentos históricos marcantes, como a unificação da Itália, os “Protocolos dos Sábios de Sião”, o caso Dreyfus e a guerra franco-prussiana.
Com isso, podemos notar cada vez mais os preconceitos de Simonini, demonstrados sempre de forma explícita (Simonini, sem dúvidas, não é adepto de meias palavras quando narra os acontecimentos), e suas atitudes completamente reprováveis, que vão de falsificação/construção mentirosa de documentos importantes - assim como relato de acontecimentos que não existiram - até assassinato. Quanto ao Abade Dalla Piccola, o que podemos dizer?... Bem, apesar de explicitamente reprovar as ações de Simonini, comete tantos atos repreensíveis quanto.
"Os homens nunca fazem o mal tão completa e entusiasticamente como quando o fazem por convicção religiosa"
Outro ponto interessante da narrativa das "aventuras de Simonini e Dalla Piccola" são os contatos desses. Dentre as interações, temos nomes como Alexandre Dumas, Victor Hugo, Garibaldi, Giuseppe Mazzini, Cavour, Sigmund Freud (sob a escrita de Froid), entre outros.
"Dumas me descrevera Garibaldi como um Apolo e, no entanto, ele me pareceu de estatura modesta, não louro, mas alourado, pernas curtas e arqueadas e, a julgar pelo modo de andar, vítima de reumatismo"
De maneira geral, Umberto Eco nos proporciona protagonistas que não geram empatia, uma análise interessante da sociedade do século XIX, um plot twist óbvio (o que pode decepcionar alguns leitores) e um passeio pela religião (e fanatismo) e pela psicanálise.
Não se trata de uma leitura rápida, na verdade, o modelo de narrativa escolhido pelo autor se torna confuso (caótico, como o próprio aponta), mas, com certeza, é uma obra muito complexa e uma ótima oportunidade de observar alguns fatos e conceitos por outra perspectiva - afinal, é necessário entender o outro para contradize-lo.











Comentários